terça-feira, dezembro 09, 2008

E se amanhã não gostares das cores que escolhemos hoje?

(...)Tropecei e percebi que hoje o mundo está a girar ao contrário. E pior do que isso, está virado do avesso e também de pernas para o ar. As nuvens estão nos meus pés e o mundo tal como o conheço está em cima de mim... Enquanto carrego o peso de andar com o mundo às costas, um grupo de turistas animado vai tirando fotografias...No meio deles, tu também.(...)

Acordei ao teu lado, também de pernas para o ar como o próprio mundo. Como se tivesse engolido o mundo. Como se eu fosse esse mesmo mundo. Já vem sendo habitual. Mas agora o improviso da improvisação vai dando lugar ao costume do hábito ou ao hábito do costume. Estás calmo e mesmo tendo percepção de que hoje o mundo pode estar muito diferente, dormes. Fico a observar-te ainda durante cinco minutos e meio, concebo para aí uns três pensamentos menos inocentes com o teu corpo e bocejo ainda uma vez. A partir daí a claridade foi entrando na cama. Ou talvez fossem os flashes das máquinas dos turistas do meu sonho. ACORDA!

- Então, sonhavas com o quê?
- Contigo.

Lugar comum, mas ok aceito. Levanto-me à pressa, porque lá fora o dia não espera por nós. (Até logo, amor.)Um beijo e cá fora, o mundo parece-me diferente. Fragmentos do meu sonho misturam-se com a realidade, e vice-versa. Turistas estranhos mas animados afundam-se em ruas que desconhecem. Os carros estão presos às estradas e estas por cima da minha cabeça. As nuvens parecem poças de água no chão e vou saltando de nuvem em nuvem para não cair no vazio. Esse vazio que me perturba e assusta. Esse vazio preenchido até ao infinito com silêncio e frio. Tenho medo e não tenho onde me agarrar. Ninguém mais parece importar-se com este cenário dramático e triste. Apenas eu. E empurrada pelo medo, acontece o inevitável - Caio!

E o vazio é tão distante. Num voo de nada, nunca mais chego a lugar nenhum. Gritar de nada vale porque no vazio não há nada por isso também não há voz. Porque no vazio já não somos nós. É o nada. No declínio vertiginoso onde o medo me acompanha, agarro-me a um tronco. Se nada existe...como fui encontrar este tronco aqui?


quarta-feira, novembro 05, 2008

La Vache Quit Rit


"Concentra-te no presente e tira o passado e o futuro do pensamento"  - sussurraram-me isto ontem à noite enquanto olhava para ti do outro lado do bar. Tinhas aquele teu ar de sempre, de quem já me deu tudo o que tinha para dar. De quem estava preso lá atrás, num passado que me parece tão distante mas que para ti é tão próximo. De quem quer agarrar o futuro que lhe foge por entre os cabelos como se fosse vento. Exibias como sempre os teus passos mágicos de dançarino cansado, iluminados por um olhar que já raramente brilha. As pessoas que conseguiam ouvir os teus disparates riam-se na tentativa de te calar. Mas, como sempre,  não percebeste.
Atrás de mim. Um rapaz. Jovem de idade e de figura. Atingiu-me com um roçar de ombro leve e tentador. 

- Desculpa. - Sorriu. Eu também. 

Inevitavelmente, segui-o com o olhar até à entrada de uma outra sala. E tu rias-te, distante. Com a porta entreaberta, não deu para ver muito. Não resisti e dois segundos depois estava colada a ela. A mão direita segurava a bebida, por isso foi a esquerda que me abriu o caminho. Meia dúzia de cabeças e lá estava ele. Sorriste. Eu também. Fui ter contigo e perguntei-te se querias sair dali e ir dar uma volta.

- Pode ser. Fumas? - Sorri. Tu também. Uma chuva miudinha fazia a noite parecer mais escura mas também mais quente. Partilhámos algumas vezes o que fumámos. E de repente, um toque bastou. Fomos dançar. Não para dentro, mas para fora dali. Não para a frente ou para trás, mas para cima. Caminhámos sempre lado a lado como fazem os bons amigos. Falaste e falaste de muitas coisas sobre as quais nada sei. Não importa. Gosto de te ouvir. Tropecei numa palavra. Prazer. Falavas do prazer e eu a corar. Falavas do prazer que o sexo traz durante uma noite de chuva miudinha. Se o prazer não fosse importante, falavas dele? 

Ri-me que nem uma louca. Ri-me que nem uma vaca. Continuámos a dançar nos lençóis que não eram meus. Hoje continuam a não ser meus. Hoje voltei a rir-me que nem uma vaca.
    




segunda-feira, outubro 06, 2008

Problemas de garganta?

Comunicar. Comunicar não é fácil. Há muita gente que fala. Fala fala fala sem saber o que diz. Há muita gente que grita e que esperneia enquanto grita, ou que grita enquanto esperneia. Já não sei bem. Sei que ía caminhando enquanto lia um livro. (se disser que estou perto da praia é demasiado lugar comum?). Estranhamente, desta vez não há ninguém. Há um grupo de pessoas sentado numa pastelaria a enfardar bolos com creme. Vá lá, é só hoje. (Pensam os gordos). Os gordos pensam sempre assim. Amanhã vai ser diferente, mas amanhã é sempre igual. Adiante.

Espirrei. Mas não estou constipada. Alergia. Mais à frente, o parágrafo que estou a ler torna-se demasiado entediante...Fecho o livro e respiro fundo. Começo a pensar. Apetecia-me dizer-te que és uma merda. Mas não chego a fazê-lo. Comunicar não é fácil. 

Passam dois carros, um branco e outro cinzento. Lá dentro, duas pessoas e um cão e uma pessoa e um bebé. Dois carros na mesma direcção mas que não vão juntos. Analogia engraçada...Se fosses o carro da frente, batia-te por trás. Do outro lado da estrada, uma velhota respira este ar de final de tarde como se não tivesse nada mais interessante para fazer. Nem eu. Passa por ela uma miúda com ar franzino e mau aspecto. Sobrancelhas tão grossas que se vêem daqui. Mais grossas do que ela. Devias arranjar isso. Dava-te outro ar. No sorriso contam-se não mais do que seis dentes e não muito brancos. Devias arranjar isso. Há uma janela que se abre e lá de dentro salta uma cabeça em forma de balão. Tem dois olhos disformes, um virado para a esquerda e outro ligeiramente para cima na direcção contrária. Solta um grunhido e a miúda olha. Conhecem-se.

Sento-me, abro de novo o livro e tento acabar aquele parágrafo. Nunca mais acaba... E começo a pensar. Um dia hei-de ter um filho. Desses a quem se dá colo e carinho. Desses a quem se segura a mão, a quem se consola quando chora. Desses que nos fazem ficar velhos num instante. Fecho o livro. Acabei o parágrafo finalmente. E penso. Não quero uma casa grande, nem uma família ideal. Não quero endireitar constantemente o tapete da entrada. Passar a vida a endireitar o tapete da entrada. Levanto-me e sigo o meu caminho. É sempre tudo igual por aqui. A miúda trabalha no talho da rua perpendicular a esta. Passo por lá. Agarrada a um lombo de porco, corta fatias fininhas para fritar. Vou devagar e ainda a vejo pegar nuns metros de salsichas frescas, todas enroladas, pesadas, gordas e gordurentas. Devias arranjar isso. Essas sobrancelhas quase tão gordas como as salsichas. Se não tivesse problemas de garganta, dizia-te isso. Comunicar não é fácil.

Perdi o marcador do livro. Volto atrás. Dou uma volta, encontro-o ao pé de uma árvore. Os gordos. Os gordos continuam a comer. A enfardar bolos com creme. É só hoje. É mais forte do que eles. E penso. Há pensamentos que são mais fortes do que os próprios gordos. Nem os gordos os conseguem ignorar. Eles deveriam ser mais fortes, não? Não me parece que isso aconteça. Será que também têm dores de garganta? Certamente que sim. Ao meu lado passa um senhor a passear um cão ou um cão a passear um senhor. É daqueles cães ásperos, sem cor definida e com um ofegar cansado e cansativo. É um senhor cansado também. Vai de calções e tem veias grossas quase a rebentar de cansaço. A sua força deve ser pouca. Tem cuidado cão, larga-me os pés. Caminho.

A miúda continua agarrada aos nacos. Sempre a cortar, sempre a cortar. Já tem a cara e as sobrancelhas salpicadas de sangue de vaca, porco, frango, avestruz, cavalo, javali, etc.. Continuo sem querer pensar mais no assunto. Tenho a garganta dorida. Deve ser do ar fresco. 

Amanhã passo por cá outra vez.



quarta-feira, setembro 17, 2008

Dançar é importante, faz-te mexer os ossos. (ponto final parágrafo)



Posso dizer-te que das poucas vezes que descemos a rua juntos (eu de um lado e tu do outro, mas sempre lado a lado) senti um arrepio. Não que isso significasse alguma coisa, não, nada disso. Hoje não é excepção. Lá vais tu, com o teu porte seguro de quem não tem nada a perder. Ao ritmo da música que ouves, um passo depois do outro. Raramente olhas em frente. Tens o olhar ao nível do chão, como se rastejasses, como se fosses um bicho. 

(e eu, que nem sequer gosto de bichos) 

Às vezes vou tão concentrada no teu movimento, que me perco por completo. Saio da rua e colo-me a ti. Vejo o que vês, cheiro o que farejas, sinto os teus medos e anseio os teus desejos. Se pudesses olhar para dentro de ti, para as tuas entranhas, vias-me certamente. E lá vou eu, estranhamente sem me cansar, colada a ti, como se fosse um bicho. 

(e tu, deves adorar bichos)

De repente, oiço uma mãe histérica a falar com o seu filho. (Booooa filho! Lindo meniiiiiiino! Quem é a coisa linda da mamãããã?! É tu! É tu!) Acordo e volto ao meu caminho, ao meu lado da rua. Fala com ele como se estivesse a falar com o seu próprio cérebro minúsculo. Coitado. Não consigo perceber quem é mais novo, ele ou a mãe. Penso. Gostava de saber quem inventou o ridículo modo de falar com as crianças. Como se fossem muito estúpidas, não chegando a ser nunca mais estúpidas do que as pessoas que com elas assim falam. Mas mais apressada do que eu, a mãe e a criança fugiram-me da vista.

Olhei para o lado, e lá estavas tu.

Levas um cigarro nos lábios. Aumento os pormenores que vejo de ti, como que a saltar para o outro lado da rua. Tens uns lábios carnudos e molhados. Continuas a ouvir música. Estamos no fim da rua. E agora, esquerda ou direita? Ali à frente há uma passadeira...talvez se tentar ultrapassar-te...ir à tua frente...fazer com que olhes para mim...pelo menos de trás. Não que seja esse o meu melhor ângulo, mas sempre é um ângulo. Faço o que estou a pensar. Um carro, outro. E estou à tua frente.

Viste?

E agora...? Tropeço? Páro e finjo que ato os ténis? Sim, boa ideia! Não tiras os olhos do chão. Ultrapassaste-me! Apresso o passo! E agora vou colada a ti. Gosto do teu ângulo. Vais virar à esquerda. Normalmente as boas pessoas viram sempre à esquerda. Será que costumas votar? Não me parece. Adiante. Esta rua é a subir... Há muito que devia estar no café. Combinei com um amigo. Provavelmente já desistiu. Olha, recebi uma mensagem. Desistiu.


Os teus pés querem fugir dos chinelos. E vejo a calçada cheia de cores. Azul, verde, amarelo, laranja, vermelho... Normalmente não costumo andar tanto. Mas está a saber-me bem esta caminhada. Olhaste para trás. E eu estagnei. Tiraste os olhos do chão. Mexes nos bolsos e deixas cair, aquilo que me pareceu uma moeda. Fui apanhar. É um pin. Está escrito: dançar é importante, faz-te mexer os ossos.

Fiquei com ele. Tu não reparaste.