segunda-feira, junho 12, 2006

Chapter 1 - O sabor amargo do silêncio já me fez parar de respirar algumas vezes.

- Alimenta-me.

Gritaste alto para todos ouvirem. Estás bonita hoje. Fico indeciso quando tenho que tomar decisões. Todos menos eu. Atravessa-me um arrepio pelo corpo. Este café está cheio. E faz muito calor apesar de estar tudo aberto. Solto um esboço de preguiça.
Tu continuas atenta aos pormenores dos meus gestos. Da minha face. (passa uma leve brisa a separar-nos) Como que a decorar os meus traços.
Pego num cigarro. Olhas para o chão, envergonhada.

- Alimenta-me.

Não vais dizer nada? Sempre foste tão orgulhosa. Serás capaz de resistir... Acendo o cigarro. Uma nuvem de fumo faz-te desaparecer por breves segundos. Alívio. Voltaste.
Olhas-me como se já soubesses o que vou dizer. Desta vez não direi nada.
Desvio o olhar, faço uma pausa. 
No outro lado da rua, passa o Gonçalo. 

- Alimenta-me.

Tão seguro. Alheio à sorte, com o livro aberto sempre na mesma página. Nem ligaste. Ainda estás a olhar para mim? Estranho rapaz, este Gonçalo. Tenho as mãos dormentes. O cigarro está no fim. Ainda não disseste nada. Tens um cabelo na boca. Vá, tira-o. Fizeste um sinal ao empregado. O que queres?

- Pode ser uma água. (falaste!)

Linhas e mais linhas...e tu só queres água. Engulo em seco o teu olhar. Toco na minha barba rasa. Hoje está mais espessa, mais uniforme. Mais tu. Quero começar de novo. Conto até cinco. Vou ter de falar. 

- Olha... (falaste mais uma vez). Diz o que tens a dizer. (estás triste, mas bonita)
- E se dissesses tu para variar. (sinto-me fraco, mas ela não repara).
- Vais começar? Estou farta de esperar.
- Esperar? (mais uma vez engulo em seco).

Esperar? Não me lembro de te ter feito esperar alguma vez. Estás à espera. Lá vem o Gonçalo novamente. O livro aberto, sempre na mesma página. Mas desta vez vem com a Maria. Numa conversa animada. Nem parece o Gonçalo. Não saberá ler? A Maria não me viu...o Gonçalo muito menos. Continuas à espera... Está a esgotar-se a tua paciência. Conheço-te tão bem. Caminham apressados.

- Alimenta-me.

Este café começa a sufocar-me. Pego noutro cigarro. Consumo-o com a mais sublime das vontades. Devagar...Olhas para mim devagar... Levantas-te. Devagar. Dou um pequeno balanço na cadeira. Estás agitada. Respiro fundo. Olhas para mim.

- Vens ou não? (estás assustadoramente decidida, plena de certezas)
- Claro que sim!

Entusiasmo??? Não era nada disto... Levanto-me. Lá fora, um bafo quente. A tua roupa está colada ao corpo. A minha também. Seguimos o mesmo caminho. Juntos na mesma direcção. Perdi-me. Mas sempre posso seguir-te, pois saberás o caminho. Respiras. Cada vez mais acertados, mais rápidos, mais calados.

- Alimenta-me.

Dez minutos de silêncio. Nem sequer encontrámos a Maria e o Gonçalo. Conversadores. Sorridentes. Uma pedra no sapato. (espera, tenho que a tirar). Páras um pouco mais à frente, quando não me vês a teu lado. Estás bonita. Conheço-te tão bem. Estás com aquele olhar... Aquele que... Vejo uma porta. Por sinal, a tua porta verde. De madeira gasta. Acendo mais um cigarro mas no meu bolso das calças de ganga gastas, está uma pastilha.

- Alimenta-me.

Atirei o cigarro. O passeio fumega. Não me importo. Estás à porta, com aquele olhar. Queres que suba? Meto a pastilha na boca. Tem o teu sabor. Já subi tantas outras vezes. Será diferente? Não. É sempre igual. Reclamo, mas gosto tanto. O patamar guarda um cheiro de outras vezes. Estás bonita, como sempre estiveste. Sobes. Enfraqueces. Sinto-te mais próxima, mais minha. O sinal da tua perna esquerda faz-me balançar a retina. Mais um degrau. Mais um balanço. Gosto de dançar contigo.


Chegámos. O teu cheiro paira por aqui. O meu também. Ainda ontem. Já não seguimos por outro caminho. Rotina. O teu sinal, a minha retina.

- Entra. (já tinha dito que estás muito decidida hoje).
- Mas não achas melhor falarmos?

Se calhar não. Entro depois de ti. Estás com aquele olhar. Um sorriso. A porta fecha-se num abraço. Como gosto de ti. Um beijo e depois outro. E pensar que estiveste calada todo este tempo para acabar assim. Mais um beijo. Como é bom dançar contigo. Agora percebo. Dizes-me baixinho o que sempre quis ouvir. E pensar que dependia das tuas palavras para viver. Quando sempre me fizeste um pedido tão simples. Tão teu.

- Alimenta-me.

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